quinta-feira, 15 de novembro de 2012

UM OLHAR SOBRE OS VIVENDOS

Texto escrito por ocasião do I Vivendo Nordeste

A pergunta que intitula o tema deste encontro “Estamos vivos e vivas?” não poderia ser mais inquietante, mais desestabilizadora, e, por isso mesmo, extremamente pertinente, frente aos novos e velhos desafios impostos por todos e todas que vivem com HIV e AIDS na sociedade atual.

Falo em desafios velhos, considerando o preconceito ainda residente, tanto por parte de quem vive esta realidade, pertencente aos mais diversos segmentos – já que não se trata mais de uma praga “gay”-, ao fazerem um caminho pelo deserto do silenciamento, à margem de uma tomada de postura que contribua para a efetivação de políticas públicas que caminhem para além de uma sobrevida, circunscrita, muitas vezes, na marginalidade, na periferia das filas dos hospitais públicos, que, embora ofereçam tratamento médico “de ponta”, caso da realidade do Estado de Pernambuco, alavancando as possibilidades de uma vida mais saudável física e psicologicamente, por sua vez, não são suficientes para trazer à sociedade outros encaminhamentos que efetivamente contribuam para a garantia da dignidade humana em âmbitos mais gerais, no campo do Direito, da Saúde Pública, do exercício à cidadania plena, por exemplo. E para tanto me parece que a atitude de se esconder não mais condiz com o que este novo contexto impõe.

É preciso, portanto, nos tornarmos visíveis, expostos, no intuito de juntarmos forças, nos agruparmos, para socializarmos experiências, dificuldades, possibilidades, limites, êxitos e, nesse aspecto, este encontro faz o maior sentido. Falo de desafios velhos também por parte das pessoas que não convivem com esta realidade, seja na condição de soropositivo, seja na condição de possuírem alguém próximo convivendo com o vírus. Nestes casos, predominam, ainda, o preconceito escancarado, em alto e bom som, travestido na ignorância religiosa, sob o prisma de dogmas envelhecidos, retrógrados e machistas; na ignorância educacional e informacional que constrói sujeitos insensíveis e intolerantes, alijados da possibilidade de tratarem da temática como uma questão de interesse de todos e, consequentemente, humanizarem suas relações interpessoais e seus discursos como cidadãos.

Nesse sentido, corroboro a afirmação de Carlos Dias, ao analisar a experiência soropositiva de Hebert Daniel, propondo que a cidadania e democracia são para toda a população brasileira. Segundo ele, Hebert Daniel exortava a todos saírem dos “guetos”, já que a permanência nesses espaços significava interiorização e aceitação da discriminação. Por isso, a homossexualidade como identidade monolítica levava a clandestinidade, já que sua realização só é possível porque vinculada ao gueto. Acrescento que, nessa nossa discussão, cabe a ampliação de qualquer forma de “gueto”, o do exílio, o do silêncio, o da apatia, o da falta de força de vontade de lutar por melhores condições cidadãs de estar e ser em sociedade. Cabe, portanto, frente aos novos desafios, já referenciados acima, uma postura, de nós que convivemos com a soropositividade em algum grau, engendrar todas estas discussões para o campo da democracia, da cidadania e da liberdade, para que não encontremos mais casos em que a morte social precede à morte biológica, ou seja, não sejamos aquele que, anunciando a possibilidade de morte, é imediatamente excluído, já que no outro, saudável, não existiria o desejo de lembrar que um dia também vai morrer. Ledo e perverso engano. Sobre essa questão, Fernando Seffner (1995: p. 131) mostrou que a

Morte por AIDS é a morte antes dela mesma, tanto no sentido físico e clínico, mas especialmente no sentido de morte civil, de perda de cidadania. A morte por AIDS quase não é vista pelo senso comum como morte no sentido biológico, já que suas representações e significações a aproximam da ideia de fracasso, punição, castigo e provação.

Não podemos permitir que, nos dias atuais, haja a menor sombra de se instituir a “morte civil” imposta ao soropositivo. Concordamos, assim, com Daniel que se a AIDS fosse “de todos”, existiria espaço para a construção da solidariedade e a vitória sobre os discursos que excluíam o soropositivo, ou se direcionavam somente a poucos segmentos. Herbert Daniel assinala bem aquilo que venho chamando de novos desafios:

O ponto inicial de orientação estratégica nos leva a divulgar que temos que viver com a AIDS. A AIDS está entre nós, é uma doença nossa, não é uma doença do outro, do alheio. VIVEMOS TODOS COM ELA. A educação de que a doença é um problema comum de toda a humanidade, gera uma estrutura de enfrentamento de onde surgem as raízes da solidariedade social.

Assim, autonomiza-se uma concepção mais humanista, isenta de preconceitos e que sinaliza a participação de todos no combate à AIDS. Como diz Daniel, é preciso retomar o poder sobre nossos corpos e lutar contra a clandestinidade, o gueto o preconceito e a negação, construindo assim a democracia, cidadania e liberdade.

Estamos vivos e vivas. Não há dúvidas.
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ANDRÉ GUEDES
Pedagogo e integrante do GTP+

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